João Cândido Felisberto |
Nos livros didáticos de história aprendemos que essa revolta
— muito conhecida pelo título de Revolta da Chibata — foi
uma luta contra o uso de castigos corporais em marinheiros indisciplinados.
Com certeza ela o foi; mas não a única... Ora, se havia castigos
corporais antes de 1910, por que, então, os marinheiros não
se revoltaram anteriormente? Eles aceitaram o castigo corporal sem reclamar
até 1910? Estas perguntas são ótimas, e será a
partir delas que vou te ajudar a questionar o livro didático de história
que você carrega embaixo do braço.
O castigo corporal nas Forças Armadas é mais antigo do que
você possa imaginar. Para não irmos longe demais, eu e você
recuaremos mais ou menos duzentos anos para depois chegarmos ao ano de 1910.
As leis que regulavam a punição em marinheiros se baseavam num
código português chamado Artigos de Guerra, que foi adotado pelos
oficiais na Marinha de Guerra logo após a independência do Brasil.
Essas leis permitiam o uso da chibata, da golilha, da palmatória e
outros castigos corporais semelhantes. Vários documentos do século
XIX que investiguei mostraram marinheiros sendo castigados com 25, 100, 200,
500 chibatadas!
Como você pode notar, não foi somente em 1910 que os marinheiros
começaram a ser castigados, isso era coisa muito antiga. E sabe qual
foi maior surpresa que tive? Até 1893 eu não encontrei nenhuma
revolta de marinheiros reivindicando o fim dos castigos corporais. Ora, então
quando e o que havia acontecido para que marinheiros começassem a repudiar
tal punição? Vamos por partes. Em primeiro lugar temos que entender
as pessoas em seu tempo e espaço. Por exemplo, se você tivesse
nascido no Brasil, em 1850, se acostumaria a ver escravos, castigos corporais
em praça pública, e nem diria que aquilo era desumano. Possivelmente,
você juntaria algum dinheiro e compraria um.
Pois bem, no século XIX, era sabido por todos que as Forças
Armadas usavam o castigo corporal para punir marinheiros e soldados indisciplinados.
A repulsa da população masculina ao castigo corporal era tão
grande que os oficiais tinham de recrutar homens à força a fim
de a Marinha não ficar entregue às moscas. Mas se o indivíduo
fosse recrutado, ele teria de ser disciplinado e não entrar em nenhuma
encrenca para evitar o castigo. Os marinheiros com certeza não gostavam
da ameaça do castigo, mas se isso finalmente ocorresse eles não
se rebelariam. A punição através do castigo físico
era visto como um método corriqueiro de correção. Foi
somente ao longo do século XIX que a privação da liberdade
foi tomando o lugar da punição através dos castigos corporais.
O que não poderia haver era oficiais excedendo nos castigos, ou seja,
bater além do que era devido. Se isso ocorresse o castigo teria sido
injusto, excessivo, bárbaro.
A Guerra do Paraguai foi uma das razões para se pensar no fim dos
castigos corporais em militares. Afinal, como bater em soldados e marinheiros
que haviam sido vitoriosos, verdadeiros “heróis” nos campos
de batalha? Por outro lado, nas últimas décadas do século
XIX, a escravidão começou a ser cada vez mais combatida por
abolicionistas e pelos próprios cativos e cativas. Várias leis
foram criadas para terminar com a escravidão, entre elas a de 1887
que proibia o castigo corporal em escravos. Ora, então como permanecer
castigando fisicamente marinheiros que eram homens livres? Além disso,
em 1888, os marinheiros mostraram nas ruas do Rio de Janeiro que eram bons
de briga: fizeram do centro da cidade um campo de batalha lutando contra a
truculenta força policial, para resolver rixas antigas entre os dois
grupamentos. A pancadaria foi tão grande que a princesa Isabel, filha
do imperador D. Pedro II, saiu de Petrópolis onde estava e demitiu
o Barão do Cotegipe (1815-1889), principal opositor à lei que
iria abolir a escravidão. Em suma, um dia após a proclamação
da República, no dia 16 de novembro de 1889, o Ministro da Marinha
decidiu extinguir os castigos corporais em marinheiros.
Porém, seis meses após o fim dos castigos, os oficiais começaram
a cobrar novas leis para castigar marinheiros. O ministro então decidiu
retomar o castigo físico, só que de forma mais pesada. Agora,
o marinheiro indisciplinado passava por um verdadeiro método de expiação
comandado por oficiais: além do castigo de chibata ele teria rebaixamento
de salário e de posto, prisão, humilhações na
caserna, etc. Tudo isso estava previsto no Decreto n. 328, de 12 de abril
de 1890, que criou a “Companhia Correcional”; o instrumento legal
no qual estavam todas as regras desse método de expiação.
Logo após essa lei começaram as revoltas de marinheiros. A
primeira grande revolta ocorreu em 1893, na cidade de Porto Alegre, no Rio
Grande do Sul, e outras aconteceram no Rio de Janeiro e em Mato Grosso. No
entanto, estas revoltas só reivindicavam o fim dos castigos ou a troca
do oficial que gostava de bater demais e, não, o fim das leis que permitiam
o uso de castigos físicos. Como se pode notar há uma grande
diferença aí: no primeiro caso, a solução da revolta
era local, ali no navio ou quartel. No segundo caso, não: reivindica-se
o fim da lei que permitia o castigo corporal em toda a Marinha. E é
justamente o segundo caso que se aplica à revolta dos marinheiros de
1910.
E não era uma revolta qualquer: foi um movimento organizado; empreendido
por marinheiros mormente negros; que exigiu mudanças na legislação
penal e disciplinar da Marinha de Guerra e melhores condições
de trabalho; revelou um mal-estar republicano; e alcançou grande repercussão
nacional e internacional ao ameaçar de bombardeio a capital federal
da República.
Foi na noite de 22 de novembro de 1910, que os encouraçados Minas
Gerais, São Paulo e Deodoro, e o scout Bahia, ficaram sob o comando
dos marinheiros, que gritavam “viva a liberdade”. Durante três
dias a população da cidade do Rio de Janeiro viveu o pânico
de ter suas casas destruídas pelos tiros dos incríveis canhões
de longo alcance, apontados contra a capital.
Na primeira mensagem enviada ao governo, os amotinados exigiam a exclusão
dos oficiais “incompetentes”, a reforma do código penal
e disciplinar da Armada (a fim de extinguir os castigos corporais), o aumento
dos vencimentos, educação para os marinheiros “incompetentes”
e uma nova “tabela de serviços” para todos os marinheiros.
Estas reivindicações objetivavam mudanças profundas na
Marinha de Guerra, e não somente pequenas modificações
locais como as revoltas anteriores haviam exigido. Por isso, a revolta de
1910 foi muito mais importante, pois revela uma mudança na consciência
desses marinheiros, que não fora alcançada pelos que se revoltaram
anteriormente.
Os amotinados demonstraram ainda uma insatisfação com a República.
No decorrer das duas primeiras décadas do novo regime, os sucessivos
governos não haviam sido capazes de tratá-los como “cidadãos
fardados” e “republicanos” e, por isso, não suportavam
mais “a escravidão na Marinha Brasileira”, exigindo, assim,
“os direitos sagrados que as leis da República nos faculta”.
Assim sendo, segundo eles, haviam resolvido romper “o negro véu,
que [os] cobria aos olhos do patriótico e enganado povo”.
Devido às “justas” reivindicações e ao poder
mesmo a que chegaram através dos canhões, os marinheiros foram
anistiados com a promessa de que suas reivindicações seriam
ouvidas. Porém, no início de dezembro do mesmo ano, o Batalhão
Naval se amotinou, sendo que, nesse caso, não houve negociação
nem anistia. A ilha das Cobras, onde estava situado o Batalhão Naval,
foi brutalmente bombardeada pelas forças do Exército e da própria
Marinha. Os amotinados de novembro não tomaram parte nos combates e
continuaram em seus navios. O governo de Hermes da Fonseca (1910-1914) porém,
decretou o estado de sítio e puniu brutalmente os amotinados de novembro
e de dezembro com deportações para o Acre, assassinatos e torturas.
Ou seja, os que foram anistiados em novembro, mesmo sem tomar parte da revolta
de dezembro, foram considerados como envolvidos e punidos como tal.
Fonte: www.arquivo.ael.ifch.unicamp.br
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